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Artigo | "O simples fato de tornar-se mãe numa sociedade como a nossa é ter cravada em sua vida a necessidade de lutar, não apenas pela sobrevivência de si enquanto mulher, enquanto sujeito, mas dos seus e das suas"

14/05/2023 às 11h41

Artigo de Evelyne Medeiros, assistente social, professora do curso de Serviço Social da UFPE, conselheira do CRESS-PE e mãe de Carlos

De acordo com a cultura russa, as matrioskas simbolizam a ideia de maternidade, fertilidade, amor e amizade. O fato de uma boneca sair de dentro de outra maior representa o ato do parto, quando a mãe dá à luz a sua filha e, consequentemente, a filha dá à luz a outra criança, e assim sucessivamente. Essa definição sobre as lendárias bonecas russas nos lembra o quanto, apesar de tantas mudanças e transformações políticas, econômicas, sociais e culturais nos últimos séculos, algumas coisas permanecem vivas e continuam se apresentando como um longo passado pela frente na história da humanidade e, particularmente, na vida das mulheres. Mais uma celebração do Dia das Mães, não por mera coincidência, no mesmo mês em que se celebra também as noivas e, no catolicismo, o mês mariano. As bonecas matrioskas lembram um ciclo, que vem de muito tempo, de mulheres comuns, parta da gente que arranca a vida com a mão, desconhecidas e condenadas ao esquecimento, fadadas desde muito cedo a carregar sob os ombros o peso do trabalho, de gestar, parir e cuidar das muitas gentes, geração após geração, quase que como um submundo que é o próprio mundo real.

A ideia de maternidade concebida como natural, vocação das mulheres, nasce na modernidade. Tem fins econômicos e políticos, de exploração, dominação e opressão, sendo imprescindível e central para a engrenagem que move o capitalismo através do trabalho não pago, não remunerado de milhões, o que ganha contornos um tanto acentuados numa realidade marcada pela herança colonial e escravocrata como a do Brasil, onde a articulação entre capitalismo, racismo e patriarcado deu-se de maneira invejável para os de cima. O padrão de maternidade, impondo às mulheres uma autoimagem de um ser mãe único e submisso, que padece no paraíso e carrega consigo um amor materno nato, tem se renovado através de muitos (novos e velhos) artifícios das classes dominantes. Não à toa ainda é muito comum frases do tipo “Esse menino não tem mãe, não?!”, “É culpa da mãe que não soube criar direito”, ou simplesmente ter que ouvir repetidamente das/os profissionais da saúde o termo “mãezinha” ao invés do seu próprio nome. Enquanto isso, o abandono paterno continua compondo grande estatística e muitas histórias de vida, porém ainda naturalizado.

O que há de novo na nossa geração? 

É inegável o avanço que a luta das mulheres e o feminismo proporcionaram para a nossa geração. Era lugar comum (e, em certa medida, ainda é) o silenciamento da maternidade, das dores, das angústias, das violências por parte das mulheres para que as mesmas conquistassem reconhecimento no trabalho, na profissão ou em outro espaço da esfera pública. O simples fato de tornar-se mãe numa sociedade como a nossa é ter cravada em sua vida a necessidade de lutar, não apenas pela sobrevivência de si enquanto mulher, enquanto sujeito, mas dos seus e das suas. Lutar por trabalho, por renda, contra a fome, por moradia, por salários iguais, contra o racismo, contra a violência... Todas essas lutas são atravessadas pela forte e imprescindível presença dessas mulheres. Questionar a brutal invisibilidade da sobrecarga materna e o peso do trabalho dos cuidados, aparentemente natural às habilidades do ser mulher, que muitas antes de nós fizeram silenciosamente, parece incomodar por demais. Há sempre quem diga “Quem mandou ter?” ou, para os mais antigos, “quem pariu Mateus que o embale”. Não é sobre as crianças e sua existência, é sobre um trabalho que, de fato, é muito pesado porque deveria ser de toda uma aldeia. Agora, quais são as aldeias do nosso tempo? Há quem se pergunte e quem tente construir formas de resistências, iniciativas coletivas, redes de apoio em meio ao individualismo, a competitividade e a falta de tempo do nosso tempo.   

É inegável que hoje a maternidade se politizou, é tema e fato político que atravessa toda a sociedade, desde os lares até o Parlamento, Universidade, partidos políticos, movimentos sociais etc. Os relatos e as reivindicações expõem o peso do trabalho doméstico e da dupla jornada, apontam e exigem a decisão de escolher ser mãe, o reconhecimento do cuidado materno como trabalho, a responsabilização do Estado pelos serviços no âmbito da reprodução social, as várias e diversas formas de se vivenciar a maternidade, a conciliação com outros projetos de vida das mulheres e o necessário questionamento e enfrentamento às suas determinações de classe social, raça e etnia, gênero, região. Tudo isso toma maior fôlego com o reconhecimento e valorização dos direitos à Infância, da necessidade de entender que as crianças são gente como a gente, são sujeitos e a sociedade como um todo precisa dialogar mais com suas necessidades e criar melhores condições para o seu desenvolvimento. 

É também parte do nosso tempo presente o avanço de relações egoístas, fragmentadas, instantâneas e a crise de projetos coletivos como parte necessária do próprio desenvolvimento atual do capitalismo. A vida em comum, partilhada, em comunidade é coisa rara; os territórios, as cidades estão cada vez mais cindidas, o que torna mais difícil ainda a maternidade, a divisão de tarefas, a solidariedade, a construção de rede de apoio, crescendo profundamente a solidão entre aquelas/as que decidem (ou não) ter filhos. Junto a isso, tem crescido também a aversão dos setores mais conservadores do país à maior participação das mulheres e aos questionamentos em torno da maternidade. A reação de tais setores tem impulsionado a renovação de formas reacionárias comprometidas com a imposição de um padrão de maternidade (e, portanto, de família e sexualidade) expressas, por exemplo, em eventos e mobilizações não raras no último período que vão desde os corriqueiros “chás de revelação do sexo do bebê” à criminalização do aborto até o Movimento “Eu Escolhi Esperar”. Isto dentre outras manifestações muito bem acolhidas e impulsionadas pelo programa político do movimento neofascista, articulando fundamentalismo e neoliberalismo. Assim, a atualização dos métodos históricos que reforçam o papel e a culpa das mulheres e sua responsabilização pela moral e os bons costumes, convivem facilmente, dentro dos próprios lares, com práticas comuns de violência, estupro, pedofilia, entre outras. Isso tudo dá muito lucro! 

Vale ressaltar que o novo conservadorismo tem adentrado, de maneira mais sutil, também inciativas que acabam por reforçar uma visão essencialista (idealista e romantizada) de mulher e da própria maternidade através dos manuais disponíveis nas redes sociais, da evocação de um sagrado feminino ou mesmo do reforço de uma ideia biologicista de valorização da mulher enquanto ser com propriedades natas para parir e amamentar, e da existência ou não de mais amor na relação entre mãe e filho/a condicionada ao parto necessariamente vaginal e a questão hormonal.

Enquanto isso, um conjunto de iniciativas que lutam em prol de outras maternidades, com respeito às diferenças, pelo direito de escolha, sem violência, abuso e exploração. Parte desse processo tem sido o trabalho valoroso de inúmeros/as (porém ainda poucos/as) profissionais no âmbito do parto humanizado, ameaçando a indústria cesarista e o ciclo de violência obstétrica que faz do Brasil um dos campões neste quesito. O trabalho que tem como base uma educação perinatal que prioriza evidências científicas, a socialização de informações, a valorização de conhecimento e práticas populares e o respeito ao corpo e às decisões das mulheres tem construído um importante contraponto nas leituras (e práticas) atuais sobre a mulher e a maternidade. A luta não é para que o homem ajude, mas cumpra o seu papel; não é para que a mulher-mãe tenha ajuda somente de outras mulheres da mesma família (quando isso ainda é possível), mas que se possa existir uma rede de apoio, de fato, não apenas a partir das relações pessoais, mas garantida pelos serviços que deveriam ser prestados pelo próprio Estado. Essa luta certamente ainda será de muitas outras gerações para que, por exemplo, cidades como Recife, considerada dentre as capitais mais desiguais do país, possa deixar de ser cenário da situação crítica que acomete milhares de famílias e mulheres-mães, forçadas a renunciar suas outras atividades, profissionais ou não, por falta de creches; ou mesmo que têm suas vidas dilaceradas pela morte de um filho pelo simples fato de ser negro.

O que a maternidade do nosso tempo histórico tem nos ensinado?

A maternidade é algo muito além do próprio fenômeno de parir e atinge a todas as mulheres, mesmo aquelas que não são mães. Somos tocadas na vida de muitas formas, com muitas experiências, mas a impressão é que a experiência da maternidade no tempo presente, diante de certo deslocamento de um lugar comum, tem sido terreno fértil para outros ensinamentos, aprendizados e lutas.

Cada uma das mulheres-mães defronta-se com novos questionamentos e novas realidades. Do campo à cidade, do centro à periferia, a maternidade vai se amalgamando com as diferentes formas de trabalho das mulheres, as diversas expressões do racismo, sexismo e capacitismo na nossa sociedade que tornam a experiência de ser mãe mais ainda cortante e, muitas vezes, até dilacerante.  

Entender que se trata mesmo de uma jornada marcada, geração após geração, pela reprodução, mas também por rupturas, por descobertas, por dores, mas também prazeres. Entre tantas inseguranças, medos e angústias, de um lado; e, de outro, um sentimento, uma força pulsante de vida que nasce e se desenvolve cada vez mais entre nós, o amor como construção, não como condição e determinação, passa a ser um exercício possível e necessário para alimentar a experiência concreta de construção de novas relações sociais, de outras gerações mais justas, mais confiantes e mais livres, rompendo o ciclo de violências. 

Entre pelejas, frustrações e enormes desafios de um tempo como o nosso, há muito esperançar nesse caminho. Há muita solidão, mas muitas mulheres dispostas a partilharem seus aprendizados, suas forças e suas lutas umas com as outras. Decidir sobre criar um/a filho/a é como reviver um sentimento e os sentidos da própria infância, e isso muitas vezes significa revisitar seus próprios fantasmas e traumas silenciados. A cada dia e a cada crise uma nova descoberta. 

Ao tempo em que a maternidade é incorporada como parte da engrenagem capitalista, dessa máquina de moer gente, e, quando compulsória, também força destrutiva da capacidade humana da qual muitos de nós somos frutos; é também terreno fértil e catalizador de anseios e lutas coletivas, do exercício cotidiano de novos homens, novas mulheres, nova humanidade. 

O caminho do maternar, para inúmeras mulheres trabalhadoras, suscita muito mais um estado de inquietações e dúvidas, que em estado de graça. A certeza da nossa geração é de que há muito ainda no que se avançar para que essa história de fazer gente seja uma responsabilidade coletiva e fruto de escolhas e da liberdade humana. Há de chegar um dia em que simbologias como a das bonecas russas expressem não mais um ciclo marcado pela reprodução, mas pela possibilidade de romper com qualquer imposição que nos impeça de ser mais, pelas muitas mulheres que habitam em nós e que nos mobiliza, nos dessacraliza e nos unifica, ontem e hoje, desde as muitas Mães da Praça de Maio até as muitas Luísas e Mirtes.

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